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Mulheres resistem e persistem na cobertura esportiva nacional


Lídia Ramires, a esquerda, seguida de Anderson Gomes, Mateus Magalhães e Janaina Ávila, a direita / Foto: Lucas Carvalho

A 9ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas acabou, mas deixou seu legado. O evento levou cultura e para a rua e ocupou espaços valiosos da cidade, encantando visitantes e apoiadores. Com o tema: Livro Aberto: Leitura, Liberdade e Autonomia, produções das mais variadas e espaços dos mais diversos surgiram para discutir questões humanas e sociais. Um deles, nada menos do que uma mesa redonda mediada por uma das coordenadoras da Bienal, aprofundou um tema muito simples e muito profundo na realidade do cidadão brasileiro, o futebol.


A mesa redonda "Múltiplos olhares sobre o futebol" reuniu quatro vozes diferentes, entre pesquisadores e apaixonados pelo esporte, para debater o real reflexo do futebol na sociedade a partir dos seus pontos de vista. Entre rivalidade e paixão, além de uma análise mercadológica do produto da transmissão esportiva, houve o tema "resistência feminina na cobertura esportiva", da professora Lídia Ramires, mediadora da mesa.


Ela levanta a questão da desigualdade trabalhista e das discriminações sofridas por mulheres, dentro do jornalismo como um todo, e principalmente no universo do jornalismo esportivo. O universo dos esportes, principalmente o futebol, é considerado preconceituosamente masculino, essa disparidade pode ser vista em diferentes âmbitos, desde consumo à participação. Portanto, analisá-lo por parte da produção de conteúdo abre as portas dos bastidores das tevês e redações, e expõe problemas profundos, seja o assédio moral, sexual, disparidade salarial ou segregação nas divisões do trabalho.

A temática é sua pesquisa de pós-doutorado, e é muito mais próxima do que apenas uma causa a ser defendida, a própria professora é sozinha uma personagem forte.


Na própria pele

Desejosa de ser jornalista esportiva desse a infância, Lídia contou sua experiência, que foi o gancho para a escolha de sua tese. Ela relata que a primeira coisa que sofreu na profissão foi ter sua autonomia associada ao pai “a primeira coisa que pediram quando eu entrei em uma redação foi o número dele. Porque era ele a figura de responsabilidade. Quando nós saímos, eu lembro, estávamos no pátio da difusora na época, e ele, muito espirituoso, piscou pra mim e disse ‘se eles soubessem quem eles botaram pra dentro eles pensavam duas vezes. Você não precisa de um pai cuidando de você’, e eu acreditava nisso realmente. Mas eu realmente não suportei”.


Entre todas a situações corriqueiras de segregação e comentários inconvenientes, a gota d’água para sua saída das redações esportivas foi sua substituição na equipe de cobertura da copa da França em 1998, “na época eu cheguei a trabalhar numa equipe com 22 integrantes, e só eu de mulher, inclusive cheguei a coordenação dessa equipe. Até que eu fui chamada pelo meu chefe, e ele me convidou para fazer a cobertura da copa naquele ano. No lugar onde eu estava, não tinha mais pra onde ascender e eu vi ali algo a mais, eu me preparei, quase comecei as aulas de francês, caríssimas, mas era um sonho um investimento. Porém, quando eu disse, um mês depois, que estava para começar as aulas ele me respondeu ‘ah olha Lídia não vai dar. A gente conversou, vamos dividir apartamento com outras duas emissoras e não é interessante que você vá porque só vai ter homem, não vai dá certo. As esposas não vão gostar, vamos estar com gente que a não conhecemos...’ eu vi que realmente não ia. Fui pra casa e disse ‘chega’. Redirecionei minha vida”.


Decepcionada, ela enveredou por outros caminhos até chegar à docência da Universidade Federal de Alagoas e brinca com a ironia de no fim das contas, sua carreira estar novamente associada ao mesmo destino europeu: “Depois todo esse caminho, hoje eu estou na França, estudando mulheres que precisam pedir ‘permissão’ para trabalhar no jornalismo esportivo”.


Deixa ela trabalhar

Agora pós doutoranda, a pesquisadora tomou como ponto de partida da sua análise a experiência de centenas de mulheres jornalistas que se associaram ao movimento #deixaelatrabalhar, hashtag levantada nas redes sociais como protesto às situações vividas por todas elas no exercício da profissão.

Criada há mais de um ano, em março de 2018, a hashtag já passa de mais de 13 mil publicações somente na plataforma Instagram. As postagens, em sua maioria, são de apoio e incentivo às mulheres que resistem em trabalhar no meio esportivo no Brasil e no mundo.


O manifesto foi criado para fortalecer a luta contra o assédio moral e sexual das mulheres que trabalham na mídia esportiva nos estádios, ruas e, principalmente, infelizmente, nas redações dos veículos de comunicação.


A iniciativa, de 52 jornalistas que trabalham com esporte, entre apresentadoras, repórteres, produtoras e assessoras de vários veículos e emissoras, lançaram a hashtag nas redes sociais. A causa, à época, foi aderida por vários clubes do futebol brasileiro.


A campanha ganhou tanta força ao longo do tempo que foi aderida não só por jornalistas mulheres, mas também por profissionais que atuam no desporto brasileiro, como árbitras, treinadoras e profissionais da saúde.


No Instagram é possível ver nas postagens recentes da #deixaelatrabalhar publicações de algumas árbitras que atuam no futebol brasileiro ressaltando o espaço da mulher onde ela quiser inclusive nos estádios.



Emauelle Borba, 20 anos, estudante de jornalismo da UFAL. Pelo Globo Esporte AL ela cobriu a final do Campeonato Alagoano de futebol 2019. Foto: Reprodução/Instagram

De acordo com Emanuelle Borba (20), estudante de jornalismo da Universidade Federal de Alagoas e estagiária do Globo Esporte Alagoas, a maior dificuldade enfrentada por ela ao trabalhar com jornalismo esportivo é a dúvida do público.


“As pessoas duvidam que a gente (mulheres) possa mesmo entender sobre o esporte. Ou seja, se eu tiver uma mesma informação que um colega de trabalho, do sexo masculino, a informação dele vai ter mais credibilidade que a minha, ainda que as duas estejam corretas. Eu perco a credibilidade por ser mulher”, revelou.


A estudante levanta ainda outra questão polêmica que deve ser sempre combatida. A mulher no futebol como símbolo sexual. “Outra questão chata é a mulher no futebol ainda ser vista como símbolo sexual”, disse.


“Eu chegava aos C.Ts, independente de qual time for, e os jogadores não conseguiam me respeitar como repórter e por um bom tempo foi assim. Eu demorei muito pra ter respeito como jornalista dentro do futebol”, revelou. A futura jornalista relatou ainda que foi orientada a ir “menos feminina” para os ambientes de trabalho para não chamar a atenção. “Já fui orientada a ir com pouca ou nenhuma maquiagem, assim como evitar sapatos altos para não estar muito arrumada pro ambiente e chamar atenção dos jogadores. Por ser jovem e uma das poucas mulheres a frequentar o local”, confessou.


Para ela, essas duas barreiras: credibilidade e respeito, são as que ela mais precisa lutar contra no seu dia-dia como repórter esportiva e um dia, quem sabe, derrubar essas barreiras de vez.


Na Bienal

A mesa aconteceu no pavilhão das oficinas, no Jaraguá e foi assistida por alunos, amigos dos participantes e aficionados por futebol que encheram a sala. Além da tese da Prof. Lídia, os outros olhares expostos merecem registro. A rivalidade entre as torcidas dos maiores clubes alagoanos, o CSA e o CRB, foi o tema da pesquisa de Janaína Ávila, também professora da Ufal, e foi base de sua fala durante o evento.


Foram analisadas as pichações ao redor da cidade e a expressão dos torcedores nas redes sociais. Janaína explica que quanto mais profunda a análise se tornou, camadas mais violentas foram achadas. Além da expressão agressiva dos próprios agrupamentos da torcida, ela aponta também a influência da cobertura desses casos e o impacto disso no imaginário popular “é evidente que a mídia também incita a violência, e isso ficou bem claro. Há pouco tempo, comentando sobre uma briga horrível entre torcedores, uma matéria dizia que a partida ‘teve todos os ingredientes de um grande clássico’, se referindo também a violência. É um imaginário que precisa mudar”, sempre associado ao combate.


Já Mateus Magalhães, ex-aluno de Lídia e de Janaina, e um dos participantes da pesquisa sobre rivalidade, estava na mesa com representante da voz poética do futebol. Com o livro “Quem Tabelar Com Toni Ganha Um Fusca”, uma reunião de crônicas esportivas suas, ele falou sobre seu relacionamento com o esporte e tratou de como o futebol emociona e extravasa os campos, de maneira a ser cultura e marca da sociedade brasileira. “É notável como o futebol não precisa de um estádio ou de uma grande transmissão para acontecer”, ele destaca, “quem ama futebol vai concordar que existem peladas tanto ou mais emocionante que um grande clássico”.


E sobre o grande futebol, veiculado nas mídias de massa, o professor Anderson Gomes apontou os desmandos nos bastidores da transmissão esportiva com o livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol . Numa análise detalhada de clubes, contratos e empresas de comunicação, a pesquisa mostrou a mercadologia por trás do esporte e apontou as manobras das empresas que monopolizam as transmissões esportivas e o impacto desses pactos de poder e de dinheiro na qualidade do esporte.


Os temas se entrelaçaram e trouxeram a Bienal um momento de reflexão sobre o futebol e suas questões mais urgentes. Mediadora proponente da mesa, Lídia encerrou o momento direcionando sua pesquisa para a necessidade urgente do debate de temas tão importantes para a dignidade de quem faz e de quem vê o futebol. Ela salientou que, embora hoje não se encontre mais no meio da transmissão esportiva, o esporte ainda a envolve e ainda mais a análise de uma temática tão pertinente e de tanto impacto na história da sua própria vida.


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