“Eu trabalho por elas porque um dia alguém fez a diferença na minha vida.”
Por João Brito, Kamilla Abely e Crísllian Rafaela
Com a pandemia de Covid-19, o número de adoção de crianças e adolescentes caiu drasticamente, seja pelo aumento da morosidade nos processos, seja pelas dificuldades (econômicas, pessoais, de saúde, etc) que surgiram entre as famílias cadastradas na fila de adoção. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2020 houve redução de 26,4% na concessão de sentenças de adoção.
Já em 2021, o número de crianças e adolescentes adotados no Brasil voltou a subir. Em comparação com 2020, o crescimento foi de 11,9%, ou seja, só nos dez primeiros meses de 2021, pelo menos 1.656 crianças passaram pelo processo de adoção. Os dados são de um levantamento feito pelo (M)Dados, núcleo de análise de informações do jornal Metrópoles, que analisou números disponíveis no CNJ.
Ainda assim, muitas crianças permanecem em busca de um lar e um vínculo familiar saudável propício para o seu desenvolvimento. E é nesse contexto que o apadrinhamento infantil surge como uma alternativa viável que pode estimular e permitir a construção de um vínculo afetivo que impacte consideravelmente a vida desses pequenos brasileiros, além de criar outras possibilidades favoráveis para a criança a considerar os variados tipos desse processo.
O processo de apadrinhamento pode contribuir para o bem-estar das crianças e jovens institucionalizados que estão à espera de um lar, de afeto e dignidade, obtendo, assim, condições mínimas para crescer e exercer sua cidadania. Sobretudo para aquelas crianças que estão na espera da reinserção familiar, que é uma das alternativas do sistema jurídico para reintroduzir elas na família. Esses menores que são acolhidos nos lares muitas vezes aguardam ansiosamente por essa reintegração e quando não há sucesso, vem a possibilidade da adoção que é a última alternativa nesse trâmite, segundo o artigo 39 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A capital alagoana Maceió possui cerca de 100 crianças em situação de abandono familiar que vivem distribuídas em oito instituições sociais de acolhimento, aguardando a reintegração familiar ou o processo de adoção. Os motivos desses jovens não estarem com seus pais biológicos são os mais variados, desde a falta de condição financeira e/ou psicológica, até mesmo maus-tratos (além da orfandade ou situação de abandono).
Quartos das meninas do Lar Batista Marcolina - Foto: Acervo Pessoal. O Lar Batista Marcolina Magalhães, instituição social sem fins lucrativos localizada no bairro Tabuleiro do Martins da capital, é um dos abrigos que acolhem crianças e adolescentes de 3 a 11 anos, do gênero feminino, em situação de abandono familiar e, além da adoção, oferecem a opção de apadrinhamento para a comunidade que busca efetivamente transmitir carinho para as crianças acolhidas.
Quando as meninas chegam nos lares de acolhimento, elas podem permanecer até os seus 18 anos de idade, e muitas vezes há lares que acolhem meninas até os 15 anos por exemplo, ocorrendo assim uma transferência de lar como conta a assistente social, Suane Cardeal no vídeo abaixo:
APADRINHAMENTO E SEUS TIPOS
Existem 3 tipos de apadrinhamento: afetivo, social e financeiro. Nesses difere o tipo de vínculo do padrinho com as crianças, como a assistente social do lar Batista Marcolina explica no vídeo abaixo.
No contexto do Lar Marcolina, as mulheres se destacam no processo de “amadrinhar” as crianças acolhidas. Elas são as mais tocadas pelas histórias das meninas e se comovem principalmente com a questão maternal. Entretanto, homens também fazem parte do grupo do público que apadrinham, principalmente quando estão acompanhados de suas companheiras.
“Homens são muito bem-vindos para apadrinhar também, inclusive as experiências que a gente teve com homens apadrinhando foi muito positiva para as nossas meninas. Até porque como a gente vive em um universo muito feminino na instituição, quando há um homem para dar uma visão diferente para as meninas é muito bom, é uma experiência muito rica”, ressaltou a assistente social do lar Marcolina, Suane Cardeal.
Os benefícios do apadrinhamento na vida de uma criança são notórios, como destaca a psicóloga do Lar Batista, Denise Barros.
LAÇO QUE FAZ A DIFERENÇA
O relato acima é da adolescente Juliana* (15), uma criança acolhida que vivencia o processo de apadrinhamento. Juliana foi entregue para uma mulher pela mãe que se prostituía. A menina era colocada para catar latinhas pela mulher que a criava e, insatisfeita com sua situação de vida, Juliana, ainda pequena, foi buscar ajuda sozinha no Conselho Tutelar.
A jovem, hoje amadrinhada de forma social, recebe os cuidados de uma psicóloga, mas também já passou pelo processo de apadrinhamento afetivo por um casal, no qual desenvolveu um laço de carinho, como conta no áudio abaixo:
*nome fictício para preservar a identidade da adolescente. Vale destacar que, em 2016, o Poder Judiciário do estado criou o projeto de Apadrinhamento, com o objetivo de levar mais consciência da vida real e social para as crianças e adolescentes que vivem em acolhimento institucional, como incentiva a juíza Fátima Pirauá.
“Quem não está com o coração aberto para a adoção pode estar para um apadrinhamento, levar uma criança para passear, participar de algum tipo de esporte, brincadeira, conhecer um parque, passar um final de semana ou feriado com sua família. Ainda temos os outros dois tipos de apadrinhamento, como o financeiro e o social. No financeiro, paga-se alguma coisa como um curso, uma escola particular, um esporte e no apadrinhamento social, o profissional oferece um pouco de seu trabalho para as crianças e adolescentes ou para o abrigo”, reforçou Pirauá.
AMADRINHAMENTO AFETIVO
Como falado anteriormente, o amadrinhamento afetivo é sobre acolher afetivamente uma criança, proporcionando a construção de um relacionamento por meio do convívio entre a madrinha ou padrinho com a criança acolhida.
"Para mim, foi um desejo natural. Eu conheci o programa, me identifiquei e já quis apadrinhar"
Auzeni Almeida é uma servidora pública que conheceu o programa de apadrinhamento por meio da internet. Com a pandemia, ela sentiu o desejo de amadrinhar e acabou tornando-se madrinha afetiva de uma menina que hoje é adolescente (15) e está acolhida em um lar situado em Maceió. A afilhada da servidora pública sofreu emocionalmente quando chegou a ser adotada por uma família e em seguida foi devolvida ao lar que estava residindo. Essa atitude, por mais que as pessoas não percebam, afeta o psicológico das crianças e adolescentes que são acolhidas.
(Foto: acervo da entrevistada)
(Auzeni e sua irmã visitando a apadrinhada no Lar)
Ouça um trecho do que a Auzeni fala sobre a sua experiência com o sistema de apadrinhamento.
“É uma experiência de amadurecimento, é uma experiência de relacionamento saudável”
Camila Loiola é psicóloga jurídica, atualmente trabalha na Vara da Infância e Juventude, e já conhecia o apadrinhamento devido ao seu trabalho no fórum fazendo orientações das famílias nos processos. Por ter o contato com os casos das crianças que eram acolhidas pelos lares, ela ficou cativada com a história da Anne*, despertou um carinho pela adolescente e decidiu amadrinhá-la até hoje.
A madrinha tenta ao máximo ajudar, suprindo o vazio que a afilhada tinha em decorrência do turbilhão de situações que enfrentou. Camila construiu uma relação forte com a afilhada, elas saem para passear no shopping, Anne frequenta a casa da madrinha, participa de atividades sociais com a família da Camila.
Em foto, Camila passeia no shopping com filhos e apadrinhada - Foto: acervo pessoal
AMADRINHAMENTO FINANCEIRO
Além de ser madrinha afetiva, Camila também é madrinha financeira de Anne, arcando com alguns gastos da menina.
“Eu não consigo sustentar a Anne em tudo, mas tenho contato com a assistente social e psicóloga do lar e elas me informam algumas necessidades da minha afilhada e eu tento assumir algumas dessas demandas. Por exemplo, ela precisava de roupa para ir para o estágio, então a gente foi comprar, escolher, pesquisar preço, com um certo limite orçamentário. Então eu vou tentando ensinar, passando essa consciência que serve pra vida mesmo”, apontou Camila.
*nome fictício para preservar o nome da adolescente.
AMADRINHAMENTO SOCIAL
O apadrinhamento é uma ação afetiva que na prática pode ser considerada como amadrinhamento, já que a participação das mulheres é maioria dentro desse sistema de acolhimento nos lares do estado de Alagoas. Em seguida, conheceremos alguns relatos de madrinhas que participam do sistema de acolhimento em Maceió.
“Pessoas, amem mais, cuidem mais, acolham mais! O amor faz toda a diferença na vida de uma criança”
A psicóloga Cristina Araújo é madrinha social de uma menina acolhida no Lar - que está aguardando adoção. Há cerca de 9 meses, a profissional faz o atendimento da criança em seu consultório.
“Eu já sabia do apadrinhamento porque sempre me interessei pela interface entre a psicologia e o direito. Esse interesse se concretizou a partir do meu mestrado sobre a devolução de crianças e adolescentes em processo de adoção e, nele, também estudo o caso da minha afilhada”, ressaltou a psicóloga.
Cristina e sua apadrinhada - Foto: acervo pessoal
Cristina, que tem o sonho de ter filhos e é tentante à adoção, esclarece que o processo de apadrinhar foi sem burocracia e, para ela, uma possibilidade de contribuir afetiva e profissionalmente com a criança: “é uma relação pacífica e com muito carinho. Na clínica, percebo as demandas dela e procuro ajudar, estando ao lado dela”.
“Acho que precisamos melhorar a divulgação do apadrinhamento e também esclarecer à sociedade que esse processo não é um caminho mais rápido e fácil para a adoção. O vínculo do apadrinhamento não pode ser confundido com o paterno-filial”, destacou Cristina.
“A partir do apadrinhamento, posso testemunhar para os colegas e outros pacientes sobre a alegria de poder ajudar. E alguns colegas também têm se disponibilizado a ajudar”
A dentista Ana Lêda Trindade também viu no apadrinhamento social a possibilidade de ajudar e fazer a diferença na vida de pessoas através de sua profissão, principalmente beneficiando crianças em situação de vulnerabilidade social. O sentimento de gratidão é tão grande que ela já compartilhou a experiência do apadrinhamento entre os colegas de profissão.
Exercendo a profissão há 9 anos, Ana atua como madrinha social no Lar há cerca de 1 ano e esse desejo surgiu durante a graduação, como ela conta no vídeo abaixo:
Ana é casada há 12 anos, possui dois filhos de 11 e 4 anos e está aberta à possibilidade de adoção. Para ela, “ser madrinha social significa que estou cumprindo o meu propósito no mundo enquanto ser humano. O sentimento é de alegria em poder contribuir para a melhora na qualidade de vida das meninas. Ainda há muito a fazer, não podemos descansar, mas se cada um puder fazer sua parte e doar um pouco do seu tempo e recursos, somos capazes de transformar a vida de muitas meninas”.
Lêda destina um horário, todas as semanas, para atender as meninas do Lar Batista Marcolina. “Ficamos esperando por esse dia no consultório. E cada semana é uma novidade diferente. O bom humor e a alegria delas é contagiante”.
Ana conta que alguns casos clínicos são marcantes, e por serem mais complexos, necessitam de várias consultas. Dessa forma, é impossível não desenvolver um vínculo afetivo. Um dos casos que Ana conta é da pequena R. de apenas 4 anos que já tinha medo de ser consultada.
“Algumas meninas, pela história de vida e situação odontológica, precisam de uma atenção especial. Um exemplo é R. que, apesar de pequena, já tinha todos os dentes cariados e um trauma enorme de deitar na cadeira do dentista. Depois de longos meses de trabalho, hoje minha amiguinha até dorme no consultório, de tão tranquila que fica. Essa foi uma grande vitória para nós”.
Ana atendendo uma das meninas do Lar - Foto: acervo pessoal
Para Lêda, o processo de apadrinhamento foi muito simples, bastando preencher um breve questionário e disponibilizar um horário para o atendimento das crianças.
“Eu trabalho por elas porque um dia alguém fez a diferença na minha vida. Um dia eu fui educada e tive oportunidades e meu dever social é ajudar para que elas tenham as mesmas oportunidades. Qual a diferença que faço no mundo se o meu objetivo de vida for somente o meu crescimento? Contribuir para o desenvolvimento e qualidade de vida dessas crianças é contribuir para o futuro do nosso país. Dar a elas oportunidades de crescer e terem uma vida melhor faz toda a diferença em curto, médio e longo prazo. Meu desejo e minha esperança é que elas cresçam e tenham um futuro melhor”, reforçou a dentista.
COMO APADRINHAR/AMADRINHAR UMA CRIANÇA?
Acolher uma criança vulnerável faz toda a diferença na vida dela. E de acordo com o parágrafo 1° do ECA, o apadrinhamento consiste em estabelecer e proporcionar à criança e ao adolescente vínculos externos à instituição para fins de convivência familiar e comunitária e colaboração com o seu desenvolvimento nos aspectos social, moral, físico, cognitivo, educacional e financeiro. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017). Dessa forma, apadrinhar é uma das alternativas mais viáveis que impactam positivamente o emocional e o social das crianças. Veja abaixo como é fácil apadrinhar:
COMO APOIAR O LAR
O lar Batista Marcolina, um dos mais antigos abrigos de acolhimento infantil no estado de Alagoas, é mantido por doações de igrejas, principalmente as igrejas batistas, de pessoas físicas que conhecem a fundação e de pessoas jurídicas que contribuem para suprir as necessidades do lar, por exemplo uma empresa colabora com alimentos não perecíveis.
Outra forma de ajuda que o lar recebe são os recursos financeiros oriundos da campanha Nota Fiscal Cidadã (NFC), desenvolvido por meio do Programa de Educação Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado de Alagoas (Sefaz-AL). O cadastro na NFC possibilita que a entidade concorra aos sorteios realizados durante o ano e tais recursos são revertidos para as reformas da instituição, desde uma pintura em algum cômodo até uma reforma do refeitório.
Reforma feita no lar Batista Marcolina com as arrecadações feitas com a Nota Fiscal Cidadã - Foto: Reprodução Sefaz-AL Outros lares foram contatados para essa reportagem, mas apenas o Lar Batista Marcolina Magalhães aceitou conceder entrevistas, imagens, informações e dados.
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